quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Prancha antiga

Quando eu estava para nascer, uma prima do meu pai, bem jovenzinha ainda, veio ajudar minha mãe com a neném que ia nascer e nunca mais quis ir embora. Encantou-se com a cidade grande e suas infinitas possibilidades. Assim, Ailza passou a ser minha irmã de criação. Morou por mais de quinze anos com a gente e só foi embora depois que se casou. Lembro de descer à noite para o quarto da empregada e assistir horrorizada Ailza colocar os longos cabelos na tábua e passar o ferro morno neles. Tinha pavor que ela queimasse a cabeça e ficasse careca. O mesmo pavor que me acompanha ainda hoje quando eu vejo no salão alguém passando chapinha nos cabelos...

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Primavera de 87

Ele veio ao mundo no mesmo dia que a Primavera chegava. Veio forte, gritando que estava ali, mas logo silenciou ao ser colocado entre os meus seios. E aquele primeiro contato acabou de selar o que já tinha acontecido entre nós por aqueles nove meses, um amor incondicional maior do mundo. O pai então se deu conta que aquilo que crescia na barriga da mulher era de verdade e entre o susto e a emoção não parava de chorar. Correu a mostrar para toda a platéia que esperava do lado de fora sua obra-prima. Deixou assustada toda a equipe médica por sair assim da sala com o bebezinho, ainda sujo de sangue e enroladinho. Mas era urgente gritar ao mundo a sua chegada...

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Bonequinha de música

Meu olho cumprido estava fixado na caixa de presente que meu pai trazia nas mãos. Eu jurava que o presente era pra mim. E pedi, tornei a pedir, implorei, fiz manha, enchi o saco. E ele falou assim que ia me mostrar, mas que o presente não seria para mim. Quando abriu a caixa vi a coisa mais linda que uma menininha poderia ver. Uma boneca delicada, de olhinhos puxadinhos, com um cabelo de seda preso numa finíssima e transparente rendinha, com um boca pintada de vermelho. A bonequinha estava sentada de pernas cruzadas num banquinho e debaixo desse banquinho tinha uma chave que girava e começava a tocar uma música linda. Entrei em êxtase e só queria o presente para mim. Ele falou que não era para mim, que como eu tinha estragado a surpresa o presente seria para minha mãe. Eu não acreditei mas na noite de natal vi o presente sendo entregue para ela e por um momento sei que morri. E continuei a morrer todas as vezes que abria o armário, naquela parte lá de cima onde se colocam coisas para serem esquecidas e via a caixa da bonequinha com ela dentro. Minha mãe não gostou do "meu" presente...

sábado, 12 de setembro de 2009

Abra-te!!!

O pai passava e falava para a porta automática:
-Abre-te, Sésamo!
E a porta se abria...
A mãe vinha atrás:
-Abra-te, Sésamo!
E a porta se abria...
E o irmão mais velho também:
-Abra-te, Sésamo!
E a porta se abria...
E a pequenininha, do alto dos seus três aninhos, não podia ficar atrás:
-Abra-te, TIO SÉRGIO!
...
Do outro lado da porta os outros integrantes da pequena família se arrebentavam de tanto rir.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Alado

Eu lembro de olhar pela janela e ter a nítida sensação de que cresciam asas em mim. Eu sentia elas crescerem e se eu olhasse de rabo de olho por cima dos ombros poderia até vê-las. Eu lembro que a vontade de sair dali era tão grande que eu me vi voando, vendo tudo por cima. No rosto , lágrimas. No coração um sentimento de impotência muito grande. Mas apesar de ter o corpo preso, eu senti de alguma forma que eu não estava ali mais. E voei...por alguns instantes eu tive esse sentimento único. Desde esse dia minhas asas tem me acompanhado. A vontade de voar só tem aumentado. E nem tanto tempo faz...

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Médica de plantas

Era um jardim de muitas flores, de muitas plantas. Dois jardinzinhos separados pela rampa que dava acesso a varanda. Tinha roseiras, a grama verdinha e numa banheira redonda com pés de jacaré (meu avô aproveitava todo lugar para plantar) reinava um cactos de vários caules finos e espinhos nas pontinhas. Era um cactos diferente de outros que não trago boas lembranças. Esses era só passar perto que a roupa e a pele se enchia de espinhos. Esse não...os espinhos ficavam lá na deles. Mas esse cactos quando cortado esguichava um leite brando, uma resina. Então a brincadeira escondida do avô e de todo mundo era cortar o cactos e brincar de médica. Fazia de conta que ele tinha se machucado, que o leite era sangue e limpava com água, fazia curativos com pano, fazia incisões profundas. Arrancava os espinhos que eram cacos de vidro de algum acidente. Eu era uma médica competente, nunca deixei morrer o paciente. Apenas o deixava mutilado, mas livre de suas "doenças". Depois limpava tudo, tratava de esconder os pedaços cortados e quando o avô perguntava quem tinha feito aquilo com o cactos fazia cara de paisagem. Tão boa essa menina ...A banheira parecia com essa, só que era preta por fora e branca por dentro.